viernes, 17 de febrero de 2012

AS POLÍTICAS CINEMATOGRÁFICAS NA ARGENTINA

OCTAVIO GETINO

Por Arthur Autran (Universidade Federal de São Carlos) e André Gatti (Fundação Armando Álvares Penteado)

Buenos Aires, Julio 2011

Para o leitor argentino Octavio Getino certamente não carece de apresentação. Já para o brasileiro isto se faz necessário devido ao tradicional desinteresse ente nós pelo que ocorre nos demais países da América Latina, desinteresse que só é quebrado pelo futebol, por acontecimentos políticos de intensidade dramática ou no campo cultural por quadros como o atual, em que o cinema argentino vem conseguindo grande destaque na crítica internacional e nos grandes festivais, bem ao contrário do cinema brasileiro.

Octavio Getino nasceu em 1935 na cidade de León, na Espanha, mas é cidadão argentino. Sua formação cinematográfica ocorreu na Associação Cine Experimental de Buenos Aires. No campo da realização o seu primeiro filme foi o documentário de curta-metragem Trasmallos (1964). Funda em 1966 com Fernando Solanas o grupo Cine Liberación e colabora na realização de La hora de los hornos (1968), produção deste grupo, assim como co-escreve com Solanas o manifesto “Hacia un tercer cine” (1969), um dos mais importantes documentos estéticos do cinema latino-americano. Co-dirige com Solanas dois documentários de longa-metragem com base em depoimentos do general Juan Domingo Perón: La revolución justicialista e Actualización política y doctrinaria, ambos de 1971. Realiza o seu primeiro longa-metragem de ficção em 1973, El familiar.

No campo da política cinematográfica dirige por alguns meses em 1973 o Ente de Calificación Cinematográfica, órgão responsável pelo serviço de censura na Argentina. Exilado durante a ditadura militar, retorna à Argentina em 1988 após estadias no Peru e no México. Entre 1989-1990 dirige o INC (Instituto Nacional de Cinematografía).

O trabalho intelectual de Octavio Getino sobre o mercado audiovisual latino-americano tem papel pioneiro e é uma das mais sólidas fontes de reflexão sobre o tema. Publicou diversos livros sobre o assunto, dos quais destacamos: Cine latinoamericano, economía y nuevas tecnologías audiovisuales, Cine iberoamericano: los desafíos del nuevo siglo, Cine argentino: entre lo posible y lo deseable e La tercera mirada: panorama del audiovisual latinoamericano.

A entrevista abaixo nos foi concedida por Octavio Getino em julho de 2011 em Buenos Aires. Ela versa, sobretudo, a respeito das políticas para o campo audiovisual empreendidas na Argentina desde o fim da última ditadura militar em 1983. Além de expor de maneira panorâmica estas políticas, o entrevistado faz uma análise circunstanciada delas, além de refletir sobre a importância cultural e política do audiovisual no âmbito da América Latina. Octavio Getino faz parte de um grupo de cineastas latino-americanos – integrado por nomes como Fernando Solanas, Gustavo Dahl ou Julio García Espinosa – que além da realização de filmes, dedicou-se à atividade política e à reflexão sobre o cinema, buscando uma compreensão global sobre esta atividade industrial e artística.

Com o processo de redemocratização na Argentina, ocorrido nos anos 1980, quais os marcos da política cinematográfica do Estado? Ela se modifica de que forma em relação ao período da última ditadura militar (1976-1983)?

Historicamente, desde os anos 1950 sempre houve uma política de proteção e fomento ao cinema na Argentina, fossem governos democráticos ou ditaduras. Isto ocorreu em muitos outros países também, ditadores como Hitler, Stálin e Franco assim como governos democráticos fomentaram o cinema. Nos anos 1940-1950 já havia fomento ao cinema, pois é o momento em que as cinematografias nacionais começam a ter dificuldades em competir com os Estados Unidos. As ditaduras tinham também a preocupação de que os conteúdos produzidos não afetassem seus interesses nem suas ambições políticas, mas se faziam filmes.

Quando se inicia o processo de redemocratização na Argentina em princípios da década de 1980 evidentemente surgem políticas interessantes. Até esta época predominava a censura no controle ao conteúdo dos filmes, mas no governo de Raúl Alfonsín (183-1989) uma das suas virtudes em relação ao cinema foi liquidar a lei de censura. Além disso, o governo desenvolveu uma política de fomento por meio do então chamado INC (Instituto Nacional de Cinematografía), dirigido por Manuel Antín [1], que facilitou o aparecimento de toda uma geração de cineastas, dos quais muitos se ocuparam em recuperar a memória do que havia ocorrido nos anos da ditadura militar. É quando apareceram diferentes tipos de conteúdos críticos nos filmes e que têm relação com o processo histórico que havia ocorrido. Por exemplo: A história oficial (La historia oficial, 1985), de Luis Puenzo, que ganhou um Oscar, ou Tangos, o exílio de Gardel (Tangos, el exilio de Gardel, 1985), de Fernando Solanas, foram películas nas quais os realizadores imprimiram uma revisão crítica. Nos anos 1980 continuou o ritmo normal do que era a produção do cinema argentino, que oscilava sempre entre 30 e 35 filmes por ano.

O governo Alfonsín teve outro viés interessante que era o de abrir mercados no exterior para o cinema nacional. Um projeto que não durou muito foi o da Argencine, que instalou em Madri um escritório para promover a venda de produções argentinas na Europa. Entretanto, os filmes agenciados pela Argencine eram aqueles que já estavam descartados no mercado europeu, quando um produtor ou diretor local tinha compradores ele não precisava da Argencine, a qual acabava por se ocupar apenas das produções com mais dificuldades de vendas. Neste momento, 1983-1987, ainda existia a União Soviética e a televisão era estatal em boa parte da Europa, pois as privatizações ainda não haviam ocorrido, logo, o principal cliente destes produtos argentinos eram os países do leste europeu e os canais de televisão da Europa ocidental. Mas a situação se modificou com as privatizações dos canais de televisão na Europa; a queda do muro de Berlim; e, aqui na Argentina, a mudança de governo em 1989, o qual modificou esta política de apoio ao cinema de autor mais inquieto culturalmente e esteticamente. A venda de produções no exterior não era um fenômeno novo, os mexicanos já haviam feito isso, observe-se que até o final dos anos 1980 o México era o país capitalista no qual o Estado tinha maior presença na atividade cinematográfica, interferia na produção, na distribuição, na comercialiação, nos estúdios e na capacitação profissional de jovens. Havia no exterior onze escritórios do instituto de cinema do México dedicados aos seus filmes.

Na Argentina não houve nesta primeira etapa da redemocratização maiores mudanças em relação ao período anterior, tratou-se de enfatizar mais o cinema de qualidade cultural que estimulou o cinema de autor e da tentativa de abrir mercados no exterior, sobretudo na Europa.

O senhor integrou durante um certo período do governo Carlos Menem (1989-1999), chegando mesmo a diretor do INC entre 1989 e 1990. Como seu deu esta participação e qual a política cinematográfica implantada?

Com Menem na presidência ocorreram várias situações contraditórias. Eu havia voltado do México em 1988, pois estava fora do país desde 1976, ou seja, desde o golpe militar. Morei seis anos no Peru e seis anos no México. Em 1987, em Cuba, durante o festival de Havana havíamos organizado um encontro de cineastas e videastas no qual tiramos uma declaração de tipo política chamada “A veinte años de Viña del Mar” [2], em que se introduzia o conceito de espaço audiovisual latino-americano pela primeira vez. Quando retornei em 1988 voltei com a idéia de espaço audiovisual, que já não era apenas o cinema, por mais que a matriz do audiovisual estivesse dada pela produção cinematográfica e ela tivesse maior impacto na formação dos imaginários, mas percebemos que a telenovela, a televisão e, sobretudo, a difusão do vídeo popular eram muito importantes. Nesta época, parece-me, há uma nova tentativa na Argentina de começar a se vincular com os outros países latino-americanos, enquanto na gestão de Antín a preocupação era de penetrar na Europa por meio da Argencine mais do que na América Latina. Fizemos um encontro em Buenos Aires em 1989 que se chamou Fórum do Espaço Audiovisual Nacional, do qual saiu um documento muito bom que menciona a relação do cinema com a televisão e o vídeo, então se iniciou um caminho novo, não muito grande, não muito massivo, porque os antigos produtores de cinema continuaram fazendo o que sempre fizeram. Quando estive na direção do INC as duas principais medidas políticas da minha administração foram: 1) A relação com a América Latina porque em 1989 firmamos os acordos que criaram a CACI (Conferencia de Autoridades Cinematográficas de Iberoamérica), a qual quatro anos depois gerou o Programa Ibermedia, que compreende acordos de co-produção, integração e comercialização. 2) A outra medida foi buscar instalar um espaço audiovisual nacional incrementando a relação do cinema com as entidades de televisão e de vídeo.

Quando entrei em rota de colisão com a política neoliberal do governo Menem fui tirado do INC, não tanto por Menem, mas pela pessoa que estava a cargo da Secretaria de Cultura da Nação. Fiquei no governo um ano e meio, mais ou menos. Na realidade, estive no governo um pouco mais, pois de início fui subdiretor de René Mugica [3] no INC antes de eu mesmo assumir a direção. Mugica foi um excelente diretor de cinema que tinha origem no socialismo, enquanto eu vinha do peronismo, havia contradições entre a cultura socialista e a cultura peronista, pois política é cultura também. Quando você milita e se formas em uma destas “tribos”, o seu caráter, a sua forma de ser, sua lógica de pensamento respondem muito a esta formação e gera tensões também quando você se comunica com outras pessoas. Então Mugica ficou três meses e não agüentou o que Menem estava fazendo, pois Menem instalou uma política similar àquelas de Collor de Mello no Brasil e Salinas de Gortari no México, eliminando todos os subsídios estatais e toda a presença do Estado em atividades que deveriam ser privadas. Por meio da Lei de Emergência Econômica, Menem começou a vender todas as empresas estatais. Apesar da renúncia de Mugica, eu pensei que deveria seguir no governo para tentar que o cinema não fosse atingido pela Lei de Emergência Econômica. Esta lei tinha um caráter geral e como ela cortava os subsídios não havia possibilidade de continuar fazendo cinema, algo similar ao que ocorreu no Brasil quando Collor fechou a Embrafilme. Mas houve uma situação favorável que advém um pouco de como se dá a política nos nossos países: Menem havia estado na minha casa no governo de Isabel Perón (1974-1976), ele era uma alternativa do setor progressista do peronismo porque se opunha à política deste governo e houve um encontro na minha casa com duzentos companheiros militantes ao qual Menem veio. Portanto, havia uma relação minha com Menem anterior á sua chegada à presidência. Na campanha eleitoral de 1989 eu e outros cineastas filmamos Menem e fizemos uma declaração de apoio a ele, incluindo “Pino” Solanas, que agora está totalmente contra Cristina Kirchner, o apoiou.

Devido a este histórico de relações conseguimos finalmente que o INC não fosse incluído na lei de emergência, ainda que não tivéssemos recursos. No ano de 1990 o instituto não tinha nada, a produção não passou de quatorze ou quinze películas. Dava-me vergonha ter que dar subsídios ou créditos ínfimos que não eram quase nada.

Quais são na Argentina as fontes de recursos dos subsídios públicos?

Desde fins dos anos 1950 até meados dos 1990 a fonte principal dos subsídios ao setor de cinema era o valor de 10% do ingresso que o espectador deixava na bilheteria. Ou seja, no caso da Argentina, o exibidor tinha de entregar 10% da arrecadação para o fundo de fomento. O Estado também apoiava de alguma maneira com recursos do orçamento nacional para os gastos fixos do INC. Mas o fundo de fomento é que era a base para a produção nacional e se dividia percentualmente em uma série de alíneas: subsídios, créditos, concursos, presença em festivais, etc.

Nos anos 1990 as relações do INC com o governo Menem sempre eram conflituosas mas conseguimos que o instituto fosse isentado do alcance da Lei de Emergência Econômica. O INC prosseguiu suas atividades com pouquíssimos recursos, porque se reduziu o orçamento do instituto devido à situação econômica em que se encontrava o país, que era lamentável, o radicalismo [4] havia deixado o país muito mal economicamente, por isto Menem ganhou as eleições.

A partir daí houve todo um processo do qual participaram as entidades de produtores e diretores visando modificar a lei que determinada a fonte dos subsídios para o cinema. É quando se começa a aplicar o conceito audiovisual mais que o cinematográfico. Em 1994, foi promulgada a lei atual de cinema, esta lei já altera o nome do INC para INCAA (Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales). Eu acredito que esta lei mudou um pouco as coisas e converteu-se, na minha visão, em uma das mais importantes da América Latina. A partir daí o fundo de fomento multiplicou-se amplamente, porque, além dos 10% das bilheterias das salas de cinema, há uma percentagem que vem da televisão, pois tanto a aberta quanto a por assinatura têm que pagar uma taxa sobre o seu faturamento não ao cinema mas a um organismo chamado COMFER (Comité Federal de Radiodifusión), que regula o rádio e a televisão em nível nacional, ou seja, é um organismo fora do INCAA que recebe uma taxa de 7% do faturamento da televisão, a qual permite a existência do COMFER. Isto é importante, porque quando o meio cinematográfico reivindicou que houvesse um imposto sobre a televisão em favor do audiovisual, a televisão disse “não ponho nenhum centavo a mais” e o projeto de cinema ficou paralisado durante um tempo, até que se chegou a um acordo pelo qual não se aumentava o percentual que os canais de televisão pagam, mas sim que o governo destinasse um percentual desta taxa para o cinema. E isto se conseguiu, pois se chegou a uma negociação política na qual o COMFER aceitou e o governo também que o cinema ficasse com 25% dos 7% que são pagos pelas televisões. Este recurso constitui quase 60% do fundo de fomento cinematográfico.

Isto ocorreu na Argentina por razões muito particulares. Menem gostava de cinema, ele queria ser ator de cinema e se rodeava do pessoal de cinema, ele até queria fazer uma escola de cinema em sua província natal, La Rioja. Ele também já havia filmado com um diretor muito respeitado na Argentina, Nicolás Sarquis [5].

Ainda foi taxada em 10% a venda ou aluguel de vídeo, que é muito mais difícil de controlar e neste momento representa menos do que então devido à queda do uso do vídeo e à pirataria. Naquele momento havia cerca de 2000 locadoras no país, hoje isto caiu para a quarta parte.

Com estas três fontes principais de recursos mais um fundo que o Estado destina para a administração, porque teoricamente o instituto depende da Secretaria de Cultura da Presidência da Nação embora ela não tivesse um protagonismo, a política cinematográfica neste século ampliou-se. Isto também ocorreu porque a política cinematográfica argentina começou a ter uma relação muito maior com todo o espaço ibero-americano por meio da CACI, houve um maior protagonismo no Ibermedia e ao mesmo tempo uma busca de co-produções e tentativas de co-distribuição com os países vizinhos. A Argentina participou de muitas co-produções, sobretudo com países menores como Paraguai, Uruguai, Chile, Bolívia e Peru; com o Brasil já não houve tantas co-produções porque os países grandes não necessitam. A política do instituto tendeu a facilitar as co-produções.

Ela também tendeu, embora não tenha conseguido resolver, a facilitar a produção do interior do país, porque também nas províncias apareceram escolas de cinema e há necessidades de produção. Há um conselho assessor honorário do instituto do qual participam os representantes das regiões do país. Este conselho tem de se reunir uma vez ao ano, porque supostamente é o conselho segundo a lei que determina a política que o INCAA vai seguir, mas na prática não funciona muito assim. Também tomam parte deste conselho as principais entidades do meio cinematográfico. Mas também há outro conselho no qual estão representados os trabalhadores, os produtores, os diretores e os atores, este conselho tem uma presença muito mais cotidiana ao longo do ano no INCAA. Todo este quadro fez com que o instituto tenha de outorgar prêmios, subsídios e ajudas voltados para o interior do país diversificando bastante o campo atendido pelo INCAA, antes basicamente integrado pelos produtores radicados em Buenos Aires.

Quais as suas expectativas para o cinema após a aprovação em 2009 da Lei de Serviços e Meios Audiovisuais? Ademais de impor limites à propriedade cruzada de meios de comunicação, esta lei abre perspectivas para a produção independente?

Pela Lei de Serviços e Meios Audiovisuais outros agentes do Estado intervêm no cinema e já não somente o INCAA. São agentes que têm interesse na produção de conteúdo para as necessidades de dezenas de canais de televisão que serão criados. Esta demanda de conteúdos vem de organizações sociais, centros culturais, universidades, etc. Em conseqüência, aí uma parte do fundo de fomento do INCAA assim como outros recursos do Estado derivados do sistema de meios de comunicação podem colaborar na diversificação e na democratização do setor audiovisual em um nível muito mais elevado em relação ao que existe na América Latina. Nenhum outro país na América Latina tem esta possibilidade até o momento, porque na Argentina pode haver centenas de canais sem finalidades lucrativas que competem com empresas privadas.

Esta é a maior luta do governo de Cristina Kirchner, porque os conglomerados midiáticos se opõem permanentemente à lei. E a oposição política, em um país no qual os partidos políticos perderam bastante a sua representatividade e não possuem mais poder de convocar as massas pois a ditadura militar os destruiu todos, tem necessidade de estar na televisão. Isto acarreta uma relação muito mais íntima entre os partidos de oposição e os meios de comunicação, de tal maneira que o governo, e eu concordo com esta idéia, percebe aí uma associação de interesses muito grande. Boa parte dos partidos políticos estão a serviço dos conglomerados de comunicação. Nos últimos três anos houve uma guerra midiática, uma guerra ideológica.

Como está configurado o quadro da produção cinematográfica argentina na atualidade? Seria possível traçar um breve panorama em linhas gerais?

O tema envolve três níveis distintos, eu creio. Há um cinema comercial tipo Globo ou coisa que o valha, o cinema das majors, ou seja, que se interessa apenas em que os filmes tenham rentabilidade, lucro. Este é um tipo de cinema que existe aqui também, há algumas experiências e que são às vezes as mais exitosas comercialmente. No outro extremo há o cinema de autor mais experimental, de investigação, como Los labios (Santiago Loza e Iván Fund, 2010), há várias películas como esta e que não chegam a interessar ao mercado salvo algum festival, pois os festivais então sempre procurando as películas novas e os autores novos, que são modas também. Então existe esta franja extrema do outro lado que não se preocupa com o mercado, mas simplesmente com a auto-expressão, e aí você tem uma variedade muito grande, porque há gente que acredita ser Orson Welles sem haver visto algum filme de Orson Welles.

A franja que me preocupa mais é a intermediária, pois é onde se pode conectar estas duas coisas e há vezes em que é difícil distinguir uma película de autor de uma película industrial, porque há nesta franja intermediária cineastas que são conhecidos como autores mas que ao mesmo tempo tratam de chegar ao mercado, ou seja, ao público, e já não apenas como forma de auto-expressão. Juan José Campanella e Pablo Trapero, por exemplo, possuem filmes muito bons. Eu acredito que este tipo de cinema deveria ser o mais apoiado, porque ele vincula inquietudes culturais e pessoais ademais da perspectiva de mercado, a qual para mim é a comunicação com o público. Há seis ou oito realizadores que estão nesta franja, são aqueles diretores que permitiriam dar sustentabilidade à produção cinematográfica.

Nenhum dos extremos dá sustentabilidade a um projeto cinematográfico nacional. Para o comercial a única coisa que interessa é ganhar dinheiro, são conglomerados que fazem investimentos para tirar lucros, no caso do Brasil há inclusive distribuidoras norte-americanas, mas estas empresas não se mantêm a partir dessa atividade, a Globo também não vive dos filmes que faz, é um complemento dos seus negócios e no dia que tiver de prescindir do cinema ela não perde nada, não foi o que se passou com a Televisa no México? Há momentos em que Televisa intervém e há outros em que não intervém no mercado. No Brasil a situação é mais grave, pois há incentivos fiscais. Na Argentina são feitos dois ou três filmes por ano deste tipo, os quais possuem atores e temas que tiveram êxito na televisão e têm sucesso quase sempre. O outro extremo tampouco dá sustentabilidade, porque não se pode sustentar uma atividade cinematográfica permanente que interesse ao mercado nacional ou latino-americano com base nas experimentações de autores que fazem coisas inovadoras, o que é necessário é dar-lhes certa importância porque este é um filão do qual alguns diretores podem passar também a fazer o que eu chamo um cinema de autor de qualidade. Os melhores realizadores, tais como Carlos Sorín e Lucrécia Martel, vêm do cinema mais autoral, mas logo buscaram um caminho para se comunicar com o público. E o cinema é comunicação, se não há comunicação não há possibilidade de sustentar uma atividade produtiva permanente. Esta experiência foi vivida pelo cinema espanhol, na época do franquismo foi estimulado o cinema de qualidade, mas destinado mais aos festivais no exterior porque se um deles premiava algum filme, o instituto de cinema da Espanha dava um subsídio, porém se o filme era exibido dentro do país não importava tanto. Para nós o importante é que haja um cinema que interesse primeiramente ao nosso público.

A questão é como elevar a qualidade e o interesse por aquela franja intermediária de um cinema de autor que trate de se comunicar com o seu público, porque se temos que nutrir as experiências e as buscas da geração mais jovem de cineastas, ao mesmo tempo não há que se perder de vista as estratégias e as lógicas do mercado, que é manejado pelas majors, de maneira que possamos posicionar nossas produções a fim de ter uma cinematografia com a qual seja possível competir.

Qual a sua opinião com respeito às salas de exibição mantidas pelo INCAA, os Espaços INCAA [6]?

Eu creio que a idéia é boa, o problema é como está idéia foi posta em prática. Acredito que o Estado e as organizações sociais – penso nos sindicatos ou nos centros de cultura – deveriam promover a difusão e a circulação do cinema. Mas se o Estado intervém deve observar também os mecanismos da demanda, e a demanda hoje deste tipo de produto audiovisual está concentrada na juventude de 15 a 35 anos, mais ou menos. Esta idéia para poder ser bem aplicada requer um planejamento destes espaços à altura do que são as demandas desta população, que já não entra na sala de cinema somente para ver a película. Hoje o maior consumo de cinema na Argentina não ocorre nas salas de rua, mas nas dos shoppings centers, onde a pessoa vai ver o filme, caminhar, tomar um café... É necessário criar uma cadeia ou um circuito de cinema que tenha uma imagem distintiva, que a pessoa entre não apenas para ver o filme, mas também para comprar um livro, ouvir música, escutar um debate com a presença do cineasta, de um ator ou quem quer que seja. Eu acredito em um espaço sócio-cultural mais que em espaço cinematográfico antigo, se o Estado intervém. E este espaço deve atrair, sobretudo, os jovens, porque se atrai o jovem vem o velho também e até a criança, porque o irmão maior vai.

Ao mesmo tempo, um circuito com estas características, ou seja, moderno, eficiente, limpo, organizado, competitivo e no qual se pode vender refrigerantes café, o que se queira; deve possuir uma programação que melhore a cultura audiovisual. Não se deve exibir filmes argentinos apenas por exibir ou filmes de outro país porque há compromissos. Eu creio que se deve tomar uma decisão política, há que se criar um sistema de difusão à altura das demandas de um mercado jovem, oferecendo ao mesmo tempo a possibilidade de programação na qual se possa eleger entre uma película nacional – que em geral não interessa a ninguém, mas que deve ser ofertada, há que se defender os autores e os realizadores nacionais –, mas também a película latino-americana de qualidade - o cinema brasileiro seria exibido neste circuito, ou o chileno ou outro – e um filme dos Estados Unidos ou da Rússia ou da África ou da Ásia. Ou seja, deve-se ofertar a produção nacional, a latino-americana e a mundial que tem qualidade e diversidade, mas que nossa juventude e nosso público não conhecem porque não interessa às majors que manejam, controlam e monopolizam o mercado, interessam somente os grandes filmes promovidos por elas mesmas. Então, se queremos desenvolver a diversidade, a democracia audiovisual, o Estado deve ter este compromisso. Mas um compromisso quase empresarial, com critério empresarial, não pode estar a cargo disso um burocrata do INCAA ou de outro organismo. A idéia dos Espaços INCAA parece-me boa, todavia não se encontrou ainda uma aplicação adequada.

Qual a importância hoje da formação audiovisual do público?

A formação crítica dos novos públicos tem a ver, entre outras coisas, com o melhoramento da produção nacional, porque se temos públicos mais cultos audiovisualmente – e as novas gerações são as principais consumidoras -, eles vão demandar do produto nacional um nível superior porque já conhecem, já viram películas de todos os lugares, não apenas filmes norte-americanos conhecidos, com efeitos especiais, mas películas que fazem pensar, fazem sentir, tem um ritmo diferente, tempos diferentes, outros temas.

Creio que o sistema INCAA é um sistema que haveria de promover a exibição também nas grandes organizações sociais, por exemplo, uma importante central de trabalhadores. Por que não se cria nos sindicatos circuitos de difusão daquelas películas que tem relação com os filiados, tratando da problemática social, da problemática do trabalhador? Há vários filmes no mundo que não passam nas salas de cinema, mas que se poderia exibir em um sindicato. Mas haveria que capacitar a exibição, que para mim é tão ou mais importante que a produção, porque o produto é concluído na exibição. A alma do capitalismo ou de qualquer atividade industrial é o mercado, mercado que é cultura também, e a cultura é mercado.

Na Argentina houve um tempo em que a Igreja Católica, por exemplo, possuía um circuito nacional nas paróquias, tinha uma distribuidora; o Partido Comunista também tinha o seu circuito, o cineclubismo aqui estava muito influenciado pela esquerda, nos sábados as projeções tinham trinta, quarenta ou mais pessoas e discutia-se o que havia sido visto. Eu acredito que este tipo de coisa deve ser retomada especificamente em relação à exibição, porque para mim a projeção cinematográfica tem uma vantagem sobre o autismo da Internet ou da televisão que é a comunicação gestual, a qual, para mim, é a comunicação mais importante que existe no ser humano, o homem comunicou por meio do gesto antes que da palavra. Ademais, da perspectiva política, se as pessoas não se encontram estamos condenados a que um se encontre com o outro por meio do celular, que é uma comunicação virtual e não é real, ou da televisão, da Internet ou outro tipo de coisa. A maior manifestação da cultura ocorre quando as pessoas estão nas ruas, não há outra. Quando cem mil pessoas se reúnem nas ruas isto fica na cabeça e no coração, é intransferível esta experiência. Quando eu falo de criar estes circuitos de exibição, trata-se também de uma função político-cultural, para ajudar as novas gerações a se organizar, a participar, a dialogar entre si a respeito de um filme, o qual é um pretexto para o encontro. Quando exibíamos La hora de los hornos [7], a película não era o mais importante, mas sim o que poderia desencadear este filme em um espaço determinado para mudar ou não mudar as idéias das pessoas.



[1] Manuel Antín (1926). Diretor argentino que realizou filmes importantes tais como La cifra impar (1961), Circe (1963) e Rosas (1971). Foi diretor do INC durante do governo de Raúl Alfonsín. Em 1991 fundou a FUC (Fundación Universidad del Cine), que hoje é uma das mais importantes escolas de cinema da Argentina.

[2] O título da declaração refere-se ao I Festival do Novo Cinema Latino-Americano ocorrido em Viña del Mar em 1967 e que reuniu diversos cineastas do subcontinente tornando-se um momento importante de articulação entre diversas cinematografias. O filme vencedor do certame foi o cubano Manuela (Humberot Solás, 1966), mas também foram exibidos obras como o curta brasileiro Maioria absoluta (Leon Hisrzman, 1964), o curta cubano Now (Santiago Álvarez, 1965) e o longa argentino La pampa gringa (Fernando Birri, 1963).

[3] René Mugica (1909-1998). Diretor que realizou filmes como El hombre de la esquina rosada (1962), El demonio en la sangre (1964) e El reñidero (1965). Militou na organização sindical de realizadores e produtores.


[4] Radicalismo é uma referência ao partido UCR (União Cívica Radical), ao qual pertencia Raúl Alfonsín.
 
[5] Nicolás Sarquis (1938-2003). Formado na importante Escola de Cinema da Universidade do Litoral, em Santa Fe, dirigiu entre outros longas Palo y hueso (1967), La muerte de Sebastián Arache y su pobre entierro (1977) e Facundo, la sombra del tigre (1994). O filme a que Octavio Getino se refere é o documentário de longa-metragem Menem, retrato de un hombre (1989).
 
[6] Os Espaços INCAA são salas de cinema mantidas pelo INCAA e que exibem prioritariamente filmes argentinos ou co-produções com participação da Argentina. Há Espaços INCAA não apenas na cidade de Buenos Aires mas também em diversas províncias da Argentina.
 
[7] Octavio Getino foi co-roteirista de La hora de los hornos em conjunto com Fernando Solanas. O filme foi realizado de forma clandestina durante a ditadura do general Juan Carlos Onganía (1966-1970). A estrutura de La hora de los hornos permitiu que ele pudesse ser exibido em pequenas partes também, desta forma trechos eram mostrados em situações como reuniões políticas, encontros sindicais, etc. O objetivo era estimular a discussão política entre a platéia.

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